sábado, 31 de maio de 2008

Minuto Agônico


Lentamente os passos dos oficiais se fazem ouvir dentro da cela sombria e gélida, onde Dostoievski dorme angustiadamente. O rumor das passadas aumenta. Uma chave destranca a porta. Diante dos prisioneiros aturdidos, um oficial e um inspetor estão de pé, indiferentes. Ordenam que se levantem e os conduzem para fora. Enquanto deixa a prisão, o frio russo fere Dostoievski; ao contemplar a madrugada nevoenta e silenciosa, impedindo o despontar do sol, sente em seu corpo, por antecipação, a agonia do fim. Não haveria vida naquela manhã!

Na praça do regimento a sentença mortal é lida de forma clara. Os condenados beijam a cruz e vestem “seus trajes para a morte”. Três deles são levados, Dostoievski está, entretanto, “na segunda fila” e não lhe resta “mais de um minuto de vida”. Um minuto, apenas, separava uma jovem vida - contava apenas 27 anos - de uma morte indigna. Repentinamente, um sinal bate, fazem “voltar os que estavam presos aos postes”, e nova sentença é lida. O imperador os concede o direito à vida; cumprirão, em lugar, quatro anos de serviços na Sibéria. Quantas imagens pretéritas passam por sua mente; um minuto agônico o faz lembrar de toda a sua vida, lembra-se de tudo o que, em segundos, veria desfalecer.

Nascera num hospital para indigentes, onde seu pai, homem severo, trabalhava como médico. Aos dezesseis perdeu sua mãe e ingressou em um colégio Militar. Lá experimentou profundamente a beleza literária e, após a morte do pai, assassinado pelos próprios servos, Dostoievski entregou-se ao fazer literário. Seus primeiros escritos foram recebidos com entusiasmo, e nosso escritor passou a freqüentar os meios intelectuais céticos e, muitas vezes, superficiais. Conheceu, em seguida, em São Petersburgo um círculo de socialistas utópicos, com o qual se envolveu; sentia dentro de si a necessidade de uma convicção vital. Junto a esse grupo, escreveu um documento controverso, no qual, ao protestar contra a servidão, hostilizava o papel da igreja e até mesmo o cristianismo. Não aprovava tais pensamentos, mas as circunstâncias selaram seu destino.

Inesperadamente, é preso, acusado de compactuar com um grupo ansioso por assassinar o Czar. Na prisão, sentia-se só e escreveu ao irmão, pedindo-o que enviasse livros, “mas (que) uma bíblia seria ainda melhor”. Meditava nos testamentos, relembrando as lições de leitura dadas por sua mãe através daqueles textos. Progressivamente, passou a sentir em seu corpo o amor envolvente de Cristo. Não havia cartas nem livros, o Evangelho, apenas, era seu alimento. Contudo, a prisão não pôs fim à sua vida, logo estaria livre e tinha “sede de crer”, de viver e de escrever.

Após os anos de servidão, Dostoievski dedicou-se à literatura, escrevendo como quem respira. Conheceu dor e alegria, contentamento e desespero. Casou-se, mas logo perdeu a mulher e também o irmão. Os anos passaram, casou-se novamente com uma companheira amada, fiel até o derradeiro dia. Escrevia muito, mas o casal estava envolto por dívidas. Fiódor não era um homem perfeito, amava Cristo, mas consumia seu dinheiro com jogos. Muitas vezes, vivia atribulado, sem endereço, sem recursos; a despeito disso, escrevia. Tempos depois, morreu aos três anos, Aleksei, seu filho, e ainda assim, escrevia. Mesmo com sua mulher amada em um leito de morte, escrevia, com beleza e coragem.

Escrevia tanto, pois esta era sua maneira de viver, de amar a vida... “se não puder escrever, eu vou morrer”. Sua escrita é afiada, conhece as profundezas do homem. Seus romances versam sobre as vicissitudes humanas. Entretanto, seu objeto mor é o drama humano, a carência do divino e a insegurança. Dostoievski escreve a um mundo desejoso da morte de Deus, confrontando com fé as ilusórias seguranças individuais. Enfrenta o mundo com seus anti-heróis belos e simples; tipos de Cristo desafiando o egocentrismo. Escreve com fé, pois seu “canto de louvores atravessou a fornalha de dúvidas”.

Porventura o mundo não precisa de anti-heróis como os de Dostoievski? Não precisa de homens capazes de eliminar seu 'eu' por um 'todos'? Indivíduos vivendo a plenitude de seu ser, como uma consagração ao outro?

Amigos, saibam que nada há “de mais corajoso, de mais perfeito do que Cristo (...) não pode haver”

Fillipe Mendes



Todas as citações entre aspas são do próprio Dostoievski, e são citadas em:
TRYAT, Henri. Dostoievski. Lello e Irmão – Editora Porto

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